por Antonio Carlos “Bolinha” Pereira, joaçabense, 74 anos
Joaçaba sempre teve salas de cinema… na década de 1930 o pioneiro CINE PROGRESSO, de Alfonso Schwartz; na década de 1940 o CINE IMPERIAL, com 600 poltronas de madeira, de propriedade do Dr. Bruno Cantergiani; nos anos 50 o CINE REX, que foi atingido por um incêndio; na década de 1960 o luxuoso CINE VITÓRIA de propriedade do Dr. Miguel Russowsky, que tinha 1500 poltronas estofadas e era o maior do estado de Santa Catarina; a partir de 1967 o CINE AVENIDA, que fechou em dezembro de 2007. Agora temos o CINE GRACHER, 550 poltronas distribuídas em três salas. Eu cresci nesse ambiente com facilidade de acesso aos filmes, e a amizade com a família Sganzerla nos aproximava ainda mais da Sétima Arte. Por 50 anos apresentei o programa radiofônico Os Discos do Bolinha, inclusive na emissora da família Sganzerla.
Neste dia 4 de maio Rogério Sganzerla completaria 79 anos. Ele nasceu em Joaçaba em 1946 e faleceu em São Paulo no ano 2004, devido a um tumor no cérebro. Considerado um gênio criativo, sua obra é reconhecida na Europa, mas agora nós temos a oportunidade de conhecê-la melhor.
A I Mostra Fita – a Música nas Fitas de Rogério Sganzerla disponibiliza para o grande público da região a obra do cineasta, que é o grande expoente do cinema marginal, e realiza três sessões gratuitas no Teatro Alfredo Sigwalt de Joaçaba. Serão exibidos seis filmes no total. Após as sessões, debate sobre algum tema importante da obra do cineasta.
Dia 5, às 19 horas, exibição Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz (2011), de Joel Pizzini, com a participação de “artistas” aqui de Joaçaba. Logo após debate com o tema “Um gênio ou uma besta? Quem é Rogério Sganzerla”, com participação de Felipe Rodrigues, montador do filme exibido.
Dia 6, às 19 horas, os filmes são: Brasil (1981), Isto É Noel Rosa (1990), Informação H.J Koellreuter (2003, sobre o compositor, professor e musicólogo brasileiro de origem alemã Hans-Joachim Koellreutter, que veio para o Brasil em 1937 e tornou-se um nome influente na vida musical no país) e Helena Zero (2006, um documentário poético sobre a trajetória cinematográfica da atriz Helena Ignez, de Joel Pizzini). O tema do debate “A Trilha Sonora nas Fitas de Rogério Sganzerla”, com participação remota do pesquisador Carlos Santana, de Porto Alegre (RS).
Na quarta-feira dia 7, às 19 horas, exibição do filme Tudo É Brasil (1997) sempre no Teatro, em seguida debate “Por uma Estética Antropofágica” (*), com a participação presencial de Antonio Carlos Pereira, o “Bolinha”, amigo pessoal do cineasta, e a participação remota do pesquisador Régis Rasia, de Campo Grande (MS). (Saiba mais em www.mostrafita.com.br)
*A Estética Antropofágica, parte central do Movimento Antropofágico brasileiro, propõe uma abordagem artística que busca assimilar e transfigurar influências estrangeiras, especialmente europeias, para construir uma identidade cultural genuinamente brasileira. O conceito, inspirado na pintura “Abaporu” de Tarsila do Amaral, utiliza a metáfora do “canibalismo” para simbolizar a absorção e transformação de elementos culturais, culminando em uma nova expressão artística que reflita a realidade brasileira.
Meus amigos, eu convivi com o Rogério desde 1987, pois quando voltava dos Festivais de Cinema de Gramado (RS) ele vinha a Joaçaba visitar seus familiares. Minha família manteve amizade com ele, com sua esposa Helena Ignez e as filhas Sinai e Djin, bem como seu pai Albino, sua mãe “Dona Clementina” Zenaide e os outros filhos, em especial o Bininho e o Angelo.
Apreciador do belo e da natureza, Rogério tinha opiniões firmes e decididas, por isso muitos não o compreendiam. Mas era possuidor de uma gentileza ímpar, uma alma delicada, atencioso com as pessoas, dedicava especial atenção a quem com ele conversava, como se pode ver a seguir.
“Maestro Bolinha, como é que você se sente diante da responsabilidade de ser tão atencioso e vulnerável às coisas tão insinuantes da vida? Você, que sempre nos propiciou grandes programas de rádio, não gostaria de criar uma nova linguagem através da música?” Era assim, com tratamento gentil e perguntas desconcertantes, que Rogério Sganzerla expunha seu gênio criador. E quando meu filho Guilherme, então com sete anos, me pede a filmadora e nos coloca no foco, Rogério antecipa, lá em 1990, uma realidade confirmada nos dias atuais: “Eu percebi, esse rapaz, esse vai ser profissional.” E aconselha: “juízo nunca é demais!” Rogério deixou seu recado pra Terrinha: “Que Joaçaba se lembre do que ela foi, do que ela é, e do que ela pode ser!”
Em 2007 participei com o vereador Ricardo Tommasi e outros cidadãos da criação do Instituto Cultural Rogério Sganzerla, que originou a Casa da Cultura Rogério Sganzerla, com o objetivo de reverenciar a memória do cineasta. Nossas famílias sempre tiveram bom relacionamento, mas a minha amizade com ele se firmou em 1987. Rogério visitava familiares e entre uma cervejinha e outra me sugeriu que apresentássemos um programa de rádio sobre os 50 anos da morte de Noel Rosa, uma das paixões do cineasta; a outra era o colega americano Orson Welles. E o que ele adorava mesmo era voltar cá pra “Terrinha”, pra Joaçaba.
Ao chegar na terrinha natal ele já me ligava, convidando para tomarmos uma cervejinha e jogar conversa fora com amigos, e gostava muito de passear pela região. Assim, visitamos e filmamos, em vídeo, as corridas de cavalo em Linha São Paulo, no interior de Treze Tílias (ali aconteceu algo inesperado: dois cavalos chegaram juntos, e a filmagem foi usada para definir o vencedor), onde também visitamos amigos, como a família do saudoso escultor Gotfredo Thaler; o jardim do hotel de Fraiburgo; revendo amigos em Tangará, sem pressa ou compromisso. E muitas horas de fraternal convivência em nossa casa, degustando comidinhas preparadas pela Marina, minha esposa, enquanto ouvíamos discos antigos de vinil.
E guardo com carinho os postais que ele, sempre gentil, nos remetia de diversos países, além do autógrafo no encarte do álbum “Brasil”, lançado em 1981 por João Gilberto com a participação de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. A foto da capa do LP é de autoria do Rogério, que também realizou um curta-metragem durante as gravações.
“Enquanto pude, fiz cinema com a máquina de escrever”, afirmava. Estudou em Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo e gazeava aulas para pesquisar o acervo das cinematecas. Aos 17 anos escrevia críticas de cinema para o Jornal da Tarde, o Estadão e a Folha. Com 21 anos participou de um festival de cinema e como prêmio ganhou uma viagem ao Festival de Cinema de Cannes.
Na longa viagem de volta de navio Rogério escreveu o roteiro de um faroeste sobre o Terceiro Mundo, “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), que lhe renderia vários prêmios, no Brasil e mundo afora. Um clássico! O filme de estreia do nosso conterrâneo foi consagrado no Festival de Brasília de 1968 nas categorias de melhor figurino, melhor diretor, melhor montagem e melhor filme; recebeu a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura, é considerado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, e foi eleito pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. E a película do Rogério ainda revelou a futura atriz Sonia Braga.
A ideia veio ao ler nos jornais a história do assaltante João Acácio Pereira da Costa, apelidado pela imprensa sensacionalista de “Bandido da Luz Vermelha”, que assaltava residências, realizando fugas ousadas e gastando o dinheiro de forma extravagante. A frase mais conhecida do filme é dita pelo marginal: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba“. Sganzerla inovou ao utilizar, com poucos recursos, muitos planos-sequência, usando cadeiras de roda, tapetes e até mesmo o cameraman saltando de dentro de um carro em movimento. Mas de qualquer maneira, a agilidade do filme, sua montagem inovadora, narração sensacionalista de locutor de rádio e a própria figura do bandido tornaram o filme um clássico da 7ª Arte.
“Eu sou e continuo sendo um experimentador. Se não entendeu, o problema é seu”, afirmava. A escassez de recursos financeiros o transformou em inventor de uma nova linguagem, levando-o a realizar uma síntese radicalmente pessoal de muitas vertentes, numa montagem frenética que mistura o cinema americano com a “nouvelle vague” francesa, a chanchada brasileira, as histórias em quadrinhos, a ficção científica e as narrativas radiofônicas, que ele tanto apreciava e tão bem exercitou naquele nosso programa de rádio.
Mesmo realizando tantos filmes, era inevitável que restasse uma frustração, confessada pelo próprio Rogério: “O filme que eu queria estrear, e que até hoje eu não pude, era um filme longa-metragem sobre o Contestado, sobre o Irani, sobre a nossa terra, esse município que era tão grande, do qual o meu pai foi um dos prefeitos, um dos construtores, pessoa que a comunidade não esquece.”
Sua obra, disponível em DVD, também pode ser apreciada em “Filmecos Sganzerla” disponível no Youtube. Em 2003 o governo catarinense atendeu ao apelo de sua esposa e musa Helena Ignez, e auxiliou no tratamento da doença do Rogério adquirindo os direitos autorais de seis filmes seus: O Bandido da Luz Vermelha”, A Mulher de Todos, Abismo, Nem Tudo é Verdade, Tudo É Brasil, O Signo do Caos, pelo valor total de R$ 67 mil. O primeiro deles valeria em torno de meio milhão de dólares.
Ao entrevistarmos o cineasta para a TV Joaçaba nosso amigo Vilmar Sartori, testemunha viva da história contemporânea, registrou em áudio e vídeo o comentário do Adgar Bittencourt, apresentador do programa Olho Vivo na TV: “Joaçaba deve ao Rogério um retorno, porque Joaçaba mandou o Rogério para o mundo e ele fez o seu papel, hoje é conhecido internacionalmente, é um dos catarinenses mais festejados na cultura brasileira e a representa internacionalmente. E nós conhecemos muito pouco dessa figura que nasceu aqui, que cresceu aqui, que fez sua primeira produção literária em Joaçaba e aos sete anos escreveu o seu primeiro livro. E é preciso que as pessoas resgatem essa dívida.”
Em 1970 o jornal O Pasquim publicou uma interessante entrevista com o casal Helena Ignez e Rogério Sganzerla, em que ele fala do livro de contos infantis que escreveu na infância. A entrevista, feita por Sérgio Cabral, Millôr Fernandes, Jaguar, Tarso de Castro, Fortuna e Paulo Francis pode ser acessada na íntegra em http://www.contracampo.com.br/27/sganpasquim.htm
ROGÉRIO recordou:
“Eu saí de casa aos onze anos. Tem uma história muito engraçada que eu nunca falei, mas vou falar hoje porque estou bebendo com vocês aqui. É o seguinte: na infância eu fui um menino obviamente inteligente, como você falou, meio prodígio. Até os cinco anos eu não falava e com sete anos escrevi um livro de contos infantis e fui a uma tipografia e publiquei um livro de contos meus. Na capa, o nome do livrinho e lá embaixo o meu nome: Novos Contos de Rogério Sganzerla.”

Numa parceria da hervalense Gabi Bresola com as Editoras Grafatória e Miríade o livrinho foi reimpresso em 2018, com a mesma capa em versão tipográfica e fac-similar (reprodução exata da edição original, incluindo fontes de letras, escalas, ilustrações, diagramação e paginação), e apresenta os textos na íntegra: Conto I A Rainha das Flores, Conto II A Bola do Mágico, Conto III Paulo e seu Carro, Conto IV Os Dois Patos. São quatro pequenos contos, o primeiro é uma fábula com estrutura clássica, mas o último apresenta um anti-herói, o patinho que abandona o irmão para assaltar o castelo de um gigante.
Em 2019 prestei depoimento sobre ele para a NSC TV, na série “Pequenos Grandes Talentos”. Existe um documentário televisivo biográfico, “Rogério Sganzerla – Precursor Marginal”, desenvolvido pelos acadêmicos da 7ª. fase do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Radialismo da UNOESC Joaçaba-SC, na disciplina de Laboratório de Produção em TV integrado a Projeto Experimental, tendo como orientadores Arnaldo Telles Ferreira e Silvia Simi dos Santos. A produção fala sobre a vida pessoal, profissional e produções de Sganzerla.
Essa personalidade e sua história são contadas e retratadas através de imagens de sua vida e das suas produções. As músicas preferidas utilizadas em seus filmes compõem o fundo acústico, além de depoimentos de familiares e amigos e conterrâneos, Alvarito Baratieri, Cristina De Marco, Vicente Telles e meu mano Carlos José Pereira, que estudou no Ginásio Marista Frei Rogério com os nossos dois cineastas, Rogério Sganzerla e João Callegaro, o qual também deu um depoimento, além do amigo de infância do Rogério, o futuro craque Clovis dos Santos, que recorda bem humorado: quando tinha uns doze anos “bancou o artista”, nas produções caseiras do futuro cineasta, fazendo “embaixadas” com uma bola de couro para encanto da plateia mirim, que assistia a essas e outras brincadeiras na garagem dos carros da família Sganzerla.
Vinte anos após a estreia como diretor ele foi homenageado cá na “Terrinha”, com uma mostra de seus principais trabalhos e recentemente o Cineclube Miguel Russowsky apresentou no Teatro Alfredo Sigwalt vários de seus filmes, e também “Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz”, no qual tive a honra de participar, a convite de seu diretor, Joel Pizzini e da assistente de direção Maria Flor Brasil. Na película a minha filha Caroline aparece brincando com as filhas e a esposa do Rogério, Sinai e Djin e Helena Ignez. Ao entrevistar sua progenitora, dona Zenaide, na residência da família, obtenho dela um sincero depoimento sobre o retorno do filho, nos anos 70, quando ele apareceu cabeludo e acompanhado de uma atriz, um escândalo na província. Foi tudo para o filme, inclusive trecho do programa de rádio sobre Noel Rosa, que o Rogério e eu apresentamos na Rádio Transoeste FM, filmado por meu colega de escola e de trabalho Ademar Filippin.
O Diretor Joel Pizzini promove um reinvento fantasioso da carreira do cineasta Rogério Sganzerla e a importância de seus ídolos nas produções do ilustre joaçabense. Com depoimentos de parceiros como Helena Ignez e Júlio Bressane e a mostra de arquivos raros, o longa a narra a metodologia, o feitio e a sonoridade desfrutada pelo diretor em seus filmes. Conterrâneo do cineasta, Antonio Carlos Pereira participa do filme “Mr. Sganzerla – Signos da Luz” (Joel Pizzini, 2012) em vários momentos, como abaixo descrito:
1) aos 54 minutos e 45 segundos, imagens de Joaçaba e do programa “50 Anos Sem Noel Rosa” que fiz com o Rogério na antiga Rádio Transoeste FM em 16 de maio de 1987; no minuto seguinte, Helena Ignez sentada assiste ao marido falar da importância de “Noel de Medeiros Rosa, o Poeta da Vila, filósofo do samba, criador incomparável de uma nova língua ou linguagem em formação”, enquanto focalizo em close o porta-retrato do patriarca Albino Biaggio Sganzerla;
2) aos 56’, a filmagem que realizei em 1987 de um bate-papo entre amigos na Câmara de Vereadores de Joaçaba;
3) na continuação da fita, minha filha Caroline faz sua estreia na tela, na ilustre companhia de Helena Ignez e das filhas do casal, Sinai e Djin;
4) dois minutos depois, entrevisto sua progenitora, dona Zenaide, na residência da família Sganzerla, e obtenho dela um sincero depoimento sobre o retorno do filho, nos anos 70, quando ele apareceu cabeludo e acompanhado de uma atriz, um escândalo na província … “ele era muito respeitado, só quando ele veio com cabelo comprido ele perdeu tudo, ela com umas roupas esquisitas, meu Deus, não era mais o mesmo Rogério … pra Joaçaba, né”;
5) E aos 62 minutos a continuação do depoimento do Rogério na homenagem a Noel Rosa, quando ele relembra o pai ilustre, Albino Biaggio Sganzerla, que foi presidente da Câmara de Vereadores e prefeito realizador da Festa Nacional do Trigo, conforme destacado no artigo “O Museu Virtual de Joaçaba”, publicado aqui no Raízes Diário na edição de 26/08/2024.
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O Rogério foi homenageado musicalmente em 1970 por Gilberto Gil, com “Mr. Sganzerla”, no álbum “Copacabana Mon Amour” e em 1969 pela dupla de compositores Roberto e Erasmo Carlos na letra da música “Meu Nome é Gal”.
“Meu nome é Gal, tenho 24 anos
Nasci na Barra Avenida, Bahia
Todo dia eu sonho alguém pra mim
Acredito em Deus, gosto de baile, cinema
Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo,
Macalé, Paulinho da Viola, Lanny*, Rogério Sganzerla… Jorge Ben, Rogério Duprat, Waly*, Dircinho, Nando, e o pessoal da pesada. E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar
Não precisa sobrenome,
Pois é o amor que faz o homem”
*Obs.: Lanny Gordin, guitarrista; Waly Salomão, poeta