Todo delírio será permitido nas semifinais da principal competição do continente. Camisas de respeito, torcidas que movem multidões e rivalidade quase bélica. Flamengo x Grêmio e Boca Juniors x River Plate vão parar as américas entre 1 e 23 de outubro.
Entre sonhos interrompidos e prazeres que prometem se repetir, restaram quatro sobreviventes na contenda libertadora. E são quatro cachorros de grande porte, que juntos somam 14 títulos. O Flamengo retorna a essa fase após 34 anos, com um time que ameaça acabar com o torturante jejum que vem desde 1981, enquanto Grêmio, Boca Juniors e River Plate foram semifinalistas também na edição passada, o que indica certa ascendência atual sobre o continente, é claro, mas também uma preocupante hegemonia dividida entre Brasil e Argentina. Se o confronto brasileiro vai mobilizar a atenção do país, o clássico argentino é praticamente uma questão de segurança nacional. Os jogos acontecem entre 1º e 23 de outubro.
SEGURANÇA NACIONAL
Como se não bastassem as eleições que se avizinham, o presidente argentino Maurício Macri ainda precisa conter um fio desencapado ao qual se viu subitamente pendurado. Porque o superclássico entre Boca e River não apenas mobiliza o país, mas é quase um tema de segurança nacional, sobretudo após o escândalo acontecido na decisão da última Libertadores, que de forma vergonhosa acabou transferida para Madrid.
Na final de 2018, a segunda partida seria no Monumental, se o ônibus do Boca não sofresse o ataque dos millonários. Dessa vez, o jogo decisivo acontece na Bombonera, e existe o temor de que as ruas do bairro de La Boca tornem-se mais apertadas do que nunca para esperar o time de Marcelo Gallardo – cair para o rival dentro de casa seria a suprema vergonha para os xeneizes. E um pouco mais de querosene nas turbinas de um país furibundo: a vaga na final se decide no estádio do Boca em 22 de outubro, uma terça, e as eleições presidenciais estão marcadas para o domingo seguinte. Pelo passado recente, se os jogos realmente acontecerem em Buenos Aires, já podemos considerar uma surpresa. Ou talvez transfiram as eleições para Estocolmo.
AURA DE TÍTULOS
Ambas as equipes porteñas são fortes, mas o River Plate carrega consigo a aura de quem nos últimos tempos se acostumou a vencer repetidas vezes, inclusive batendo o próprio rival. Para chegar na quarta semifinal em cinco anos, terceira consecutiva (a exemplo de Renato com o Grêmio), Marcelo Gallardo se viu em apuros contra o Cerro Porteño, diante da inesquecível festa que a torcida azulgrana promoveu na Nueva Olla, fazendo o que se deve fazer na arquibancada, ou seja, contrariando tudo que a Conmebol determina.
O “Gre-Nal da Libertadores”, essa instituição etérea que pesa sobre a cabeça dos gaúchos, acabou mais uma vez adiado porque o Flamengo eliminou o Inter com indiscutível superioridade nos dois jogos. O Rubro-Negro avança às semifinais após 34 anos, intervalo obsceno para o clube mais popular do Brasil – enquanto Zico estava na Udinese sonhando com o retorno, o time atual não era sequer nascido. Garantir presença entre os quatro melhores da América, portanto, significa livrar-se de um fardo histórico, e talvez garanta ao time carioca a fibra moral necessária para voltar a triunfar no continente.
DUELO DE PODEROSOS
A vida flamenguista, obviamente, será árdua. Para chegar à decisão, precisa passar pelo Grêmio, e o confronto promete ser interessante sob todos os aspectos envolvidos. Será o duelo entre o poderoso e trovejante time que engrenou velozmente sob o comando de Jorge Jesus contra o mítico quero-quero tricolor, equipe mais azeitada do Brasil nos últimos anos, que se transforma e se remodela a cada estação para continuar sendo protagonista no cenário sul-americano.
Se o Flamengo conta com o time mais virtuoso do Brasil na escalação, não se pode desconsiderar que estará pisando em um caminho que o Grêmio já tem decorado e por onde se move com insuspeita naturalidade. Desenha-se, portanto, uma espécie de disputa entre Potência x Sabedoria, certamente assistida in loco por mais de 100 mil pessoas em arquibancadas pulsantes, que vai deixar o Brasil dormente nas noites de quarta-feira.
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(*) Texto do jornalista e comentarista esportivo Douglas Ceconello, fundador do “Impedimento.org”, dedicado ao futebol sul-americano.